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terça-feira, 28 de abril de 2009

A obra que modificou Porto Alegre

Sr. Leopoldino Braga foi um informante indicado por Daniela Bemfica, técnica do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), como um engenheiro que havia participado das obras de canalização do Arroio Dilúvio. Ao contatar Leopoldino, descobrimos que ele não apenas participou, como foi também o responsável técnico pela execução da obra. Seguem alguns momentos da entrevista:

Duas imagens ficaram gravadas na minha lembrança, depois da entrevista com Sr. Leopoldino Borges. A primeira foi quando ele abriu a porta, sorridente, nos recebendo com ar seguro, pedindo que entrássemos. Estava estampada em seu rosto a vontade de falar do Arroio Dilúvio, ou como veríamos a seguir, sobre o DNOS. A segunda imagem foi quando ele, no meio da entrevista, segurou a mão no ar, fechou os olhos e disse:

- Feche os olhos, tire fora a Ipiranga. O que sobra?



Esse seria o tom de toda a entrevista, imaginar não apenas Porto Alegre, mas todo o Estado do Rio Grande do Sul, sem as obras que foram realizadas pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento, no qual Sr. Leopoldino trabalhou como engenheiro civil e superintendente durante muitos anos. Foram inúmeras obras de construção de esgoto sanitário, barragens, canalização de arroios, e outras medidas tomadas no Estado, após a grande enchente de 1941, com o intuito de domar a fúria das águas, evitar alagamentos e promover saúde pública. Parte do milagre econômico, da transformação das capitais em metrópoles e do desenvolvimentismo brasileiro, foi também um marco na construção civil do RS este departamento: um órgão federal, destinado à realizar obras de grande porte, de infra-estrutura urbana, que após concluídas passavam a ser responsabilidade dos municípios beneficiados. Fechado pelo ex-presidente Fernando Collor de Melo na década de 1990, nos perguntamos, na companhia de Leopoldino, onde foram parar a memória, e os bens do DNOS? Uma parte certamente está com Leopoldino, em suas lembranças, mas e as outras? Uma máquina destinada a dragagem constante do Arroio Dilúvio da qual não se sabe o paradeiro, ou os 40 teodolitos encomendados da Suíça, dos quais ele lembra com gosto. E certamente retomamos a importância deste órgão, no atual contexto de inundações constantes em todas as regiões do país.

Além da história do DNOS, aprendemos muitas coisas nesta entrevista, que iremos divulgar agora no blog, em algumas postagens. Na primeira narrativa editada, Leopoldino nos conta os longos anos que esta obra necessitou, tendo sido iniciada pelo município de Porto Alegre, e terminada pelo DNOS, com a participação de personagens ilustres da capital aos quais Leopoldino se refere com intimidade: Ildo Meneghetti, Telmo Thompson Flores, entre outros que se envolveram com a transformação da região do Arroio Dilúvio em Avenida Ipiranga. Leopoldino conta que a Prefeitura realizou as obras de escavação da Av. Praia de Belas até a Ponte da Av. Azenha, assim como a urbanização do antigo braço do riacho aterrado, até a Ponte dos Açorianos. Da Ponte da Azenha e da João Pessoa, até a Barragem do Sabão, em Viamão, o DNOS assumiu a obra, transformando o “filete” que era o dilúvio no largo canal que vemos hoje. Mostramos algumas fotografias da construção do canal para Leopoldino. A perspectiva atual de imaginar o que resta de arroio em meio à região urbanizada se inverte: era a configuração urbana, a estética de ruas, avenidas, trânsito, canalizações, que parece surgir do barro, da lama, nas imagens.



Outra narrativa incrível foram as negociações com os moradores que tiveram de ser removidos, dos terrenos desapropriados durante as obras. A sua habilidade na argumentação com um “português” que queria embargar a obra, e temia a ligação da sanga de seu terreno no largo canal do Dilúvio, ganha destaque. Leopoldino ri com gosto dessas lembranças. Sua simpatia e seu senso de humor quanto aos conflitos inerentes a uma obra deste porte revelaram um aspecto pouco conhecido, e mais humano, de um período de grandes transformações da cidade. Aos 86 anos, Leopoldino parecia ter claras essas imagens, dedicava a elas alguns silêncios durante a entrevista. Interrompia às vezes a narrativa, para resgatar algum detalhe que a memória costuma embaralhar, ou para consolar sua fiel cadelinha, que no início implicou com o microfone da equipe, mas que depois aconchegou-se ao seu lado, e dali não saiu.

Em outras narrativas, Leopoldino faz referência à antiga Ilhota, onde morava sua esposa, durante a infância. Ela nos contou, ao final da entrevista, sua convivência com a vida social da Ilhota, e a enchente de 41 que elevou as águas à altura de um adulto, na sua casa. O casal soma já mais de 60 anos de casados, e se mostrou muito disponível para narrar essa Porto Alegre que viu nascer a Avenida Ipiranga. Saímos de sua casa satisfeitos, com uma nova bagagem para a pesquisa, mas com vontade de saber mais. Gostaria também de ver como será a surpresa de Leopoldino e sua família, ao verem suas narrativas na internet. Essa é a fase da pesquisa das lembranças, das narrativas, sobre essa velha e alagadiça Porto Alegre. Mais estórias virão.

Entrevista com Leopoldino Borges. Realizada em 16 de abril de 2009. Participaram da entrevista Ana Luiza Carvalho da Rocha, Rafael Devos, Viviane Vedana e Ana Paula Marcante Soares.

Créditos das fotos

Fonte: DEP (Departamento de Esgotos Pluviais) - Porto Alegre

Fundo de Origem: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa

Ano: 1951

domingo, 19 de abril de 2009

Urbanização de arroios

Saída de Campo com o Engenheiro Sanitarista Paulo Paim, nosso consultor da equipe do projeto, e atualmente representante do Departamento de Recursos Hídricos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. A equipe de gravação era composta por Ana Luiza Carvalho da Rocha na direção, Rafael Devos na câmera e Viviane Vedana na etnografia sonora.

Saímos de casa em “horário de engenheiro”, 06:30 da manhã, para buscarmos Paim. No caminho, algumas combinações. Paim vai olhando ao longo do arroio, da Av. Barão do Amazonas até a Av. Antônio de Carvalho, algumas questões para nos mostrar. Vou gravando com Vi suas primeiras falas, para ajustar o dispositivo de gravação. O rosto de Paim levemente iluminado pelo sol da manhã e o arroio passando ao fundo evocam outras imagens produzidas pela pesquisa.

Primeiro ponto a observar: Beco dos Marianos. Ali Paim nos comenta o que seria o “arroio natural”, com a vegetação em volta que ajuda a sustentar o leito do arroio, o solo que absorve boa parte da água, e uma “cara de sistema” que está sendo hoje recuperada pelo sanitarismo contemporâneo – recentes loteamentos devem deixar como área de lazer, “parque” os leitos dos arroios, sem construir nada na margem, sem canalizar. Ainda vou me ajustando ao esquema de entrevistar e gravar ao mesmo tempo, com Paim já tenho intimidade para segurar a entrevista mesmo olhando pelo visor da câmera. De dentro do carro, percorrendo esse trecho da Av Ipiranga ainda sem asfalto, Paim observa que apesar do arroio parecer “natural” ele possui uma murada de contenção. Paramos o carro para conversar com uns moradores sobre o “nível” até onde chega o arroio em cheias. Essa parece ser uma informação muito importante – na Ipiranga do asfalto, o limite é a altura das pontes, exatamente. Os moradores, dois rapazes, não parecem muito am interessados, mas fazem sinal que estão atrasados para pegar o ônibus. Esse é o problema de abordar alguém na Av. Ipiranga – ali a ética é a da pressa e do trânsito que flui, não do passeio, com exceção para os corredores e caminhantes do final de tarde. Ainda dentro do carro, Paim retoma suas lembranças de Teresópolis – confessa que os seus pais pedim para ele jogar o lixo de casa no arroio, no mesmo arroio que ele e o irmão brincavam. Constata que apesar da casa estar “de costas” para o arroio, deste ser os “fundos” da casa, era para eles um quintal, ou seja, fico pensando, fazia parte de um microcosmos. Interessante como Paim retoma constantemente essa imagem da infância, do arroio Passo Fundo no Bairro Teresópolis como sua imagem primeira da água. É o que Bachelard vai nos dizer sobre a nossa rivière íntima, uma água que corre nas profundezas de nosso imaginário, e que nos remete ao nosso cosmos interior, que é mais presente na infância. Claro que essa imagem da lembrança foi acionada pelo “arroio natural”. Quando entramos no arroio onde é mais evidente a obra de saneamento, foram mais outras questões de saneamento e sua relação com a cidade que surgiram. Ana chama a atenção para o fato de que essa aparente “desordem”, “falta de obra” que o arroio “natural” apresenta poderia ser uma motivação simbólica para um certo descaso com o arroio, no sentido de que ele seria uma fronteira, limite, fim do espaço urbanizado, não ser “de ninguém”.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Rede de memórias

Os relatos dessas pessoas num bairro que ainda conserva traços de outra época proporcionam a formulação de uma rede de memórias que praticamente reconstrói toda uma paisagem que hoje apenas ao olharmos não conseguimos perceber. Uma paisagem onde o riacho devia ser parte essencial e que hoje mesmo não estando visível persiste no imaginário das pessoas que ali construíram uma vida. Luna Carvalho, uma das bolsistas do projeto, iniciou o trabalho de pesquisa etnográfica com esses moradores, com o objetivo de realizarmos algumas gravações no local. Segue o diário de campo dos dias 23 de março e 01 de abril:

A Rua João Alfredo e o seu entorno tem uma importância bem significativa para o estudo do arroio. Além de existir um conjunto de fotos e crônicas que demonstram o que se passava ali, a região que mais conservou traços da época em que o riacho ainda não era canalizado mesmo ele estando hoje canalizado e fechado. De início tinha me proposto a tentar ver marcas deixadas pelo riacho, a sinuosidade que diziam existir nas ruas construídas em cima, e pouco tinha pensado nas pessoas que poderiam me contar e sugerir coisas novas.



Rua João Alfredo

Da ponte de pedra partimos eu e um amigo para a Rua Décio Martins, que da Av. Loureiro da Silva fica meio escondida por uma pracinha cheia de árvores e pelo viaduto da Av. Borges de Medeiros que começa bem ali, é um lugar um pouco abandonado. Logo no começo da rua via-se um portão aberto com movimento de funcionários dentro, era um almoxarifado do DMAE, demos uma espiada e um homem de uns sessenta anos se aproximou, perguntamos se aquela era mesmo a rua construída em cima do riacho, ele disse não saber ao certo, mas contou ter achado na parte de trás do almoxarifado na João Alfredo canos antigos da década de setenta que ele acreditava ser do riacho canalizado. Perguntei o que eram os pavilhões do outro lado da rua, disse que era a parte de trás do pão dos pobres, nessa hora me lembrei de uma fotografia antiga, que já foi postada no blog mostrando o pão dos pobres de cima, estávamos mesmo em cima do riacho.

Seguindo então até a República, lembrei novamente da crônica de Leandro Telles que contava ter um amigo morador do prédio construído em cima do riacho nessa mesma rua, o homem que dorme em duplo leito. Agora estávamos a procura da continuação da Décio Martins, a outra rua que segue atrás da Rua João Alfredo. Da Baronesa do Gravataí dobramos na Miguel Teixeira e uma quadra depois estávamos lá: numa ruazinha estreita e asfaltada, um pouco sinuosa com um matinho alto seguindo nas suas margens, algumas bocas de lobo e no meio da quadra um tampo de concreto que provavelmente daria na água do riacho.As construções ali são simples, algumas sem reboco, grudadas nos fundos das casas da João Alfredo o que não possibilitou ver aquela paisagem das fotos antigas que mostravam os barquinhos parados próximo aos muros, já do outro lado da rua só se vêem muros altos, alguns com grafittis desenhados, eram os fundos dos prédios da Baronesa do Gravataí. Pouca gente circulava por essa rua.


Rua Dilmar Machado

Seguimos até a Av. Aureliano de Figueiredo, atravessamos e chegamos na Travessa Pesqueiro, seguindo até o meio da quadra encontramos uma casa com data de 1915, ali dois senhores trabalhavam, era uma marcenaria. Eles nos contaram que essa travessa dava acesso até o riacho, as pessoas iam por ali pra pescar. Indicaram o morador da frente que seria o mais antigo da rua e teria mais a contar. Por sorte uma senhora entrava no portão dele, não foi preciso bater, perguntamos pelo senhor e não demorou muito ele apareceu. Nos falou morar ali a vida toda,desde 1942 ano em que nasceu, quando criança jogava futebol próximo as margens e via os barcos carregados de carvão e lenha passar tanto em direção ao centro como em direção ao resto da cidade, outros que carregavam frutas. “- eles jogavam laranja pra gente”. Ele falou que melhorou muito o acesso ao centro da cidade já que para chegarem até a João Alfredo tinham que passar por um caminho estreito de terra até a ponte da Rua Miguel Teixeira, mas ao mesmo tempo contou que os tempos de riacho eram muito agradáveis, bem diferentes de hoje, segundo ele. Nos mostrou uma página de jornal com uma foto antiga do arroio. Combinamos de retornar para uma entrevista com ele.

Depois disso percorremos a João Alfredo a procura da fábrica de instrumentos musicais que eu tinha sido informada existir desde a época do riacho, ela fica próximo a Aureliano de Figueiredo. Na entrada já se via que era um estabelecimento antigo. Um senhor e um homem estavam atrás do balcão, o mais velho veio falar conosco, lembrando que seu avô, vindo da Itália, construiu e fundou a fábrica de instrumentos, dizendo se lembrar um pouco da época que o riacho passava por ali, que era uma rota importante de comércio e transporte. A fabrica ainda possui canos antigos que transportavam gás, sistema usado depois da construção do Gasômetro. Nos contaram que toda família era de músicos, lembrando da Ilhota e do Areal da Baronesa, dos grupos de chorinho, de batuque que existiam nessas regiões.


Rua Décio Martins

Uma semana depois dessa última saída retornei a campo, dessa vez comecei o trajeto pela Ipiranga lá por umas nove horas da manhã, queria tentar fazer o caminho do arroio, mas não consegui saber ao certo onde ele fazia a curva em direção a João Alfredo. Pela Getúlio Vargas segui até a Múcio Teixeira entrando na João Alfredo, nessa hora estava uma luz legal pra fotografar o lado esquerdo da rua. Resolvi continuar até a Décio Martins, segui andando até o almoxarifado do DMAE. Ali conheci mais um antigo morador da região. Me falou largo dos abacateiros do outro lado do riacho, da praia da foz e da estação de trem perto da ponte de pedra. Do nada tinha encontrado o que procurava, alguém que se lembrasse daquela antiga paisagem, disse ter vivido um bom tempo na Avenida Luis Guaranha e na Barão do Gravataí. Dei o cartão do projeto, combinando uma futura entrevista.


Rua Miguel Teixeira

Voltando, entrei na Baronesa do Gravataí. Pela Luis Afonso fui até a João Alfredo, queria falar com seu Felippe da ferragem. A loja fica na esquina e na parede no lado da Miguel Teixeira um grande mural dá um aspecto descolado ao lugar. Entrei, e lá estava o senhor que mesmo não conhecendo sabia ser seu Felippe, uma senhora e um homem mais jovem. Me falou que a ferragem existe desde a década de 20, mas ele comprou há quarenta anos, viveu nessa zona a vida inteira e quando pequeno morava na Ilhota. Em alguns momentos a senhora que estava sentada numa cadeira virada para o lado comentava alguma coisa sem me olhar muito, também se lembra da infância junto ao riacho, dos peixes, “muito muçum”, segundo ela. Seu Felippe comentou que o arroio era navegável até o Hospital Porto Alegre, o que achei estranho lembrando dos barcos que dona Alda, outra informante, dizia passar na frente de sua casa no bairro Santana. Dos vizinhos antigos só sabia do dono da fábrica de instrumentos Valcareggi que continuou morando ali, o resto faleceu ou se mudou. Uma cliente entrou, então entreguei o cartão, me despedi e saí.

Travessa Pesqueiro

Em direção a travessa pesqueiro, passei pela frente da casa do senhor da semana passada, não estava por ali ,na marcenaria em frente pude ver as sombras dos dois senhores que trabalhavam, continuei até o final na Barão do Gravataí e segui pela direita, fazendo a volta na quadra, já que não conhecia a região. Voltando para a Travessa Pesqueiro, uma senhora varria a calçada. Lembrei dela. Perguntando pelo senhor que conheci na semana passada, contei que no outro dia tínhamos conversado sobre o arroio, descobri então que ela se lembrava tanto quanto ele do tal riacho. Morou também a vida inteira naqueles arredores, na Luis Guaranha, na Ilhota e, por último, na Travessa Pesqueiro. Enquanto varria me contava que, quando era criança, costumava passar por cima da muretinha da ponte na Getúlio Vargas e disse imaginar que um dia o Riacho Ipiranga (expressão usada por ela), transbordaria e alagaria toda cidade matando todo mundo. Sobre os vizinhos, disse que os mais antigos já morreram, inclusive um “batuqueiro” morador da casa da esquina que ainda existe. Ela estava bem interessada no assunto, no final me perguntou se eu havia visto alguma foto antiga da época, falei ter algumas no museu Joaquim Felizardo, na Rua João Alfredo, ficou animada e disse que quando tivesse tempo, iria fazer uma visita.


Fundos da antiga Rua da Margem

ARROIO DILÚVIO - Mapa dos locais pesquisados em Porto Alegre - clique nos ícones para ver


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