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quinta-feira, 28 de maio de 2009

Memórias do antigo riacho na Cidade Baixa

A ponte de pedra sobre o Arroio. Fonte: Catalogo Jacob Prudêncio
Data: século XX, década de 30.
Autor: Jacob Prudêncio Herrmann


Segue trechos do diário de campo da bolsista Renata Ribeiro, da saída de campo de 24 de abril de 2009, que seguiu o trabalho de montagem da rede de informantes nos bairros Areal da Baronesa e Cidade Baixa.

“Se há uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem.”

Este parágrafo do livro “A Poética do Espaço” de Gaston Bachelard define bem o que senti ao realizar está saída a campo, quando experimentei o “êxtase da novidade da imagem”. Logo, os parágrafos seguintes narram o meu primeiro contato com o local de pesquisa – onde outrora o antigo riacho corria e onde hoje vivem as pessoas que podem testemunhar sobre a sua existência.

Luna e eu fomos caminhando em direção à rua Décio Martins Costa onde hoje dorme o riacho, uma rua não muito larga e cheia de casas em cujos fundos se avista uma grande parede. Na outra extremidade vê-se um prédio relativamente pequeno, onde se encontra abaixo do apartamento térreo, o antigo leito do riacho. Durante essa caminhada que fizemos, para que eu pudesse reconhecer o local de pesquisa e poder melhor me localizar, passamos por diversas ruas com o objetivo de descobrir os lugares por onde outrora corriam as águas do riacho – rememorando o seu percurso. Luna ia então me apontando o caminho por onde ele corria, tentando localizar suas antigas pontes que atualmente já não existem mais. Passamos por ruas como: Rua da República, João Alfredo, Décio Martins Costa, Travessa do Pesqueiro, Baronesa do Gravataí.

Durante esse nosso percurso, nos deslocamos em direção a Travessa Pesqueiro, lá passamos em frente à casa de seu José, um informante de aproximadamente 60 anos que Luna já conhecia de outras saídas a campo e que por coincidência se encontrava naquele exato momento no pátio, um estreito corredor, atendendo alguém que o chamava da rua. Então, ela logo me apresentou como uma colega que também estava trabalhando no Projeto Habitantes do Arroio. Em nossa breve conversa, perguntamos a ele se poderíamos fazer uma entrevista. Prontamente ele concordou, indagando se iríamos demorar muito. Respondemos que naquele momento nós duas apenas queríamos marcar a entrevista. Propusemos a quarta-feira seguinte, dia 29/04, entre 9h 30mim e 10h – sugestão que foi aceita por Seu José. Ele sugeriu-nos que seria interessante que seu compadre estivesse junto no dia da entrevista, pois os dois são, conforme seu José, os mais antigos moradores dali. “Eu sou o primeiro morador mais antigo e ele o segundo.” Ele ainda destacou a lembrança que tinha do riacho passando atrás da casa do seu compadre. “O riacho passava costeando o portão da casa dele”. Por fim, pedimos a Seu José que nos permitisse tirar uma foto dele. Muito simpático disse: “claro”, colocando-se em pose de fotografia dentro de seu pequeno pátio que é compartilhado com outras famílias. Em seguida nos despedimos e continuamos nosso percurso.

Informante do projeto Sr. José, ao lado de sua residência. Autor: Luna Dallas.

Como bem sabemos, a máquina fotográfica é instrumento que gera curiosidade e interesse das pessoas que observam o fotógrafo. A máquina fotográfica assim como outros instrumentos, como por exemplo, câmera de vídeo gera muitas vezes uma aproximação entre o pesquisador e nativo. Como foi o caso de um rapaz que passava por ali naquele momento. Ele se aproximou muito espontâneo e logo perguntou: “por curiosidade, o que vocês estão fotografando?”. Respondemos que estávamos tirando fotos da região para o nosso projeto e explicamos no que ele basicamente consistia. Ele pensou que nós estávamos registrando aquelas imagens por causa do quilombo. Explicou-nos, então que aquelas terras em outra época pertenceram ao Barão e à Baronesa do Gravataí (Gravathay), nos apontando as ruas que hoje levam esses nomes e onde existiram muitos escravos. Além disso, nos comentou que por ali ficava o “Areal da Baronesa”. Logo a seguir, se despediu de nós, seguindo seu caminho, parecia estar com certa pressa.

Essa questão do “Areal da Baronesa” levantada pelo rapaz me despertou curiosidade e fui pesquisar sobre o assunto. Constatei que o Areal ou Araial ficava na praça Cônego Marcelino e que levava este nome devido à quantidade de areia que o riacho acumulava naquele local no passado. E que foram justamente as constantes enchentes que o riacho provocava que levaram a dona das terras, já debilitada pela velhice, a fazer a divisão daquelas terras e a construção de ruas. Mais adiante, com o fim da escravidão e com a morte da baronesa, este território que anteriormente servia como refúgio de escravos por ter uma vegetação que proporcionava bons esconderijos, tornou-se a moradia de escravos libertos. (Google: Quilombos de Porto Alegre).

Durante este trajeto fomos fotografando o local que é repleto de bares instalados em antigas residências do século anterior. Foi então que novamente a câmera fotográfica serviu de instrumento de aproximação. Enquanto registrávamos diferentes imagens, uma senhora entre 70 e 80 anos de idade nos observava da porta do edifício onde mora. Assim que percebi tive vontade de ir até ela, pois imaginei que ela pudesse ter lembranças daquela região para compartilhar conosco. Porém não foi necessário abordá-la, pois não demorou muito e ela perguntou bastante interessada, o porquê de estarmos fotografando o local. Dona Marieta, como se chama, disse que mora lá desde criança. Nós duas, felizes com a resposta que ela havia nos dado, sobre o tempo que ela mora naquela região, indagamos novamente perguntando se ela tinha lembranças do riacho. Ela disse que sim, nos relatando que quando era moça o seu irmão alugava um barco para eles passearem pelo riacho. Depois de uns minutos de conversa, o marido de Dona Marieta, Seu Omar, chegou, nos cumprimentado com simplicidade e timidez. Em seguida explicamos para eles o porquê daquelas fotos, discursando sobre o projeto e seus objetivos. Durante a conversa, obviamente falamos sobre o “Dilúvio”, o que levou Dona Marieta a se manifestar dizendo: “Na época era chamado de riacho”. Falou-nos do carnaval que acontecia ali, nos dando a entender que este era um evento importante e especialmente bonito. Comentou-nos que quando era moça, ela e as amigas se arrumavam e saiam para festejar o carnaval; contudo o seu “papai” sempre a alertava: “Só até a praça!”. Ela nos mostrou também, na própria Rua João Alfredo, onde ficava a sua antiga casa, nos comentando que atualmente funciona uma garagem naquele local. Disse também, que após sair de lá foi morar na casa que fica ao lado de sua atual residência onde hoje funciona um centro espírita. Além disso, nos apontou com o dedo um local onde antigamente funcionava uma casa de fazenda e em que atualmente, de acordo com Dona Marieta, funciona um depósito. Depois nos mostrou uma casa, que acredito estava sendo reformada para o funcionamento de um bar, explicando-nos: “Aquela casa em construção era do Lupicínio Rodrigues”.

Achei muito interessante os relatos de Dona Marieta, pois enquanto a ouvia falar, lembrei-me da Professora Ana Luiza falando em uma reunião geral do BIEV, sobre Tempo Subjetivo (onde se encontra a narrativa e a lembrança do que já foi vivenciado) e o Tempo do Mundo (onde se encontra o registro do mundo social e cultural). Afinal, dona Marieta quando narra a sua história utiliza-se do Tempo Subjetivo, pontuando sempre com o Tempo do Mundo.


Dona Marieta prosseguiu nos falando sobre a enchente de 1941. Ela contou que felizmente a sua família não perdeu nada, pois seu “papai” e seus irmãos acomodaram os móveis em lugares altos de maneira que a água não os alcançasse. Todavia, tanto Dona Marieta quanto Seu Omar nos disseram que se lembram bem de que para sair de casa, só era possível de barco. Dona Marieta até nos apontou, em relação à parede do edifício, a altura que a água da enchente atingia.
Casal de idosos informantes do projeto. Autor: Luna Dallas.

Por fim, pedimos a eles licença para fotografá-los. Aceitaram com uma pequena resistência da Dona Mareta, que falou não estar arrumada, porém não foi necessário nem mesmo insistir para bater a foto, ela logo se posicionou, abraçando o seu marido e sorrindo para a câmera fotográfica. Despedimos-nos deles e Seu Omar disse que procuraria em sua casa fotos antigas da região; além disso, nos disseram, muito simpáticos, que poderíamos voltar em outra hora para conversarmos mais sobre suas lembranças do arroio.

Seguimos o nosso caminho em direção ao Viaduto da Avenida Borges de Medeiros, onde subimos. Paramos para visualizar de forma privilegiada pela altura em que nos encontrávamos a imensidão das ruas que atualmente são pavimentadas com asfalto. Era até mesmo difícil de acreditar que em outra época, o riacho passava por ali, seguindo o seu percurso em direção a Ponte de Pedra. Ainda de cima do viaduto, nós avistamos alguns prédios em meio a uma fumaça, neblina ou poluição, não soubemos identificar, mas que nos chamou a atenção e fotografamos.

O último local em que tivemos em nossa saída a campo foi a Ponte de Pedra, pois eu havia comentado com Luna que eu nunca tinha passado pela famosa ponte e queria muito ir até lá. Foi então, que ela me passou a câmera fotográfica para que eu também pudesse passar pela experiência de fotografar, nessa minha primeira saída a campo. De cima da ponte, logo visualizamos supostamente uma “moradora de rua” que estava alimentando as pombas com farelos. A cena provocada pela ação dessa mulher foi extremamente bonita. Eram centenas de pombos voando rapidamente, mas sem perder a leveza de um pássaro que plana antes de chegar ao chão, ao seu redor, deixando-a um pouco desnorteada, porém aparentemente feliz com todos aqueles pássaros a sua volta.

Ponte de Pedra. Autor: Renata Ribeiro.

Por fim, acredito que esta minha primeira saída a campo foi bastante produtiva e até mesmo privilegiada, pois logo nos deparamos com aquele casal tão bem disposto a compartilhar conosco suas lembranças do riacho, das enchentes e da cultura daquele local. Com certeza a Cidade Baixa ainda guarda muitas outras histórias, causos referentes ao riacho, constituindo-se em importante página para o resgate da memória ambiental de Porto Alegre e que está sendo realizado através do Projeto Habitantes do Arroio. Gostaria de destacar também que esta saída a campo desenrolou-se com bastante naturalidade e até com certa inspiração, pois me foi possível ver e expressar a beleza e a poesia que de forma sensível todos podemos perceber em tudo o que nos cerca.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sr. José - A infância na beira do riacho

Nesta postagem, nossa bolsista Renata Ribeiro apresenta trechos de seu diário da entrevista com Sr. José, realizada em 29 de abril de 2009, na qual nos contou, entre outras coisas, a sua infância no antigo riacho que cortava a Cidade Baixa, ligando a Ipiranga à Ponte de Pedra, no Centro da cidade.


Essa entrevista com Seu José tem como objetivo, o resgate de uma realidade vivenciada por ele em seu passado. Fatos, imagens, lembranças que marcaram, não somente
a sua vida, mas também a história de Porto Alegre. Por conseguinte, esta é a busca do devaneio de um homem que vivenciou parte da existência do antigo riacho. Por meio de palavras tento reviver algumas de suas recordações, do passado do riacho, nos parágrafos seguintes.

Chegamos à rua onde Seu José reside (Travessa Pesqueiro) próximo às 10 horas, a fim de realizarmos a entrevista previamente agendada. Ao chegarmos lá, os Professores Ana Luiza, Rafael e Viviane bem como minha colega Luna e eu, Renata, fomos em direção a pequena casa de seu José – onde fomos recepcionados por sua esposa. Após os cumprimentos e apresentações, decidimos realizar a entrevista em uma pequena sala de jantar. Seu José sentou-se em uma cadeira em frente à janela, pois acreditávamos que a luz da rua poderia ser aproveitada para iluminar a filmagem. Posicionamo-nos próximos uns aos outros, em frente ao entrevistado. Professor Rafael estava com a câmera de vídeo, a Professora Viviane com o equipamento de som, a Professora Ana Luiza e Luna faziam a entrevista e eu auxiliando a todos no que precisassem.

A Professora Ana, se não me engano, foi quem pediu para que Seu José se apresentasse em frente à câmera. Ele então começou falando que se chamava José Antônio da Silva Vieira, que tinha 67 anos, quatro filhos e oito netos. Em seguida, a Professora Ana perguntou-lhe a respeito de suas experiências marcantes em relação ao riacho. Ele respondeu que pescava naquelas águas e que sobre um tronco, ele e os amigos se divertiam atravessando o riacho. Brincavam de tocar pedras uns nos outros, separados pelo riacho. Além disso, muitas vezes ele e os amigos aguardavam os canoeiros passarem, jogando frutas para os que se encontravam em suas margens. Ainda recordou-se dos grandes barcos de carvão que passavam pelo arroio em direção ao gasômetro. O entrevistado falou-nos também do percurso do riacho. Disse que ele passava pela Ilhota, entrava na Rua Getúlio Vargas e desaguava no “Pão dos Pobres”. Contou-nos por diversas vezes que esta era uma época muito boa.
Seu José relembrou também dos tanques, os “cabungos”, que existiam em frente às casas, que acumulavam o esgoto doméstico e eram levados pela prefeitura para a “Ponta do Asseio”, na beira do Lago Guaíba. Falou-nos ainda sobre a canalização do antigo riacho, relatando que este procedimento ocorreu quando ele tinha aproximadamente 10 anos de idade. Contou-nos que ele e os amigos tinham medo de brincar em meio à obra, pois os operários os amedrontavam, dizendo que quando eles abrissem a passagem da água, quem estivesse no canal do arroio, poderia morrer afogado. Falou-nos também que antes desta obra de engenharia, não ocorriam muitas enchentes, mas que posteriormente estas foram inúmeras. Motivo que levou diversos moradores a se mudarem da região. Contou-nos ainda sobre um incêndio que destruiu antigas casinhas de madeira que havia no lugar das atuais que se encontram no pátio de Seu José. Relatou que esta calamidade aconteceu na véspera de Natal de 1978 e que o fogo alcançou quase até a esquina de sua rua, onde existi um prédio. Recordou-se também das rixas “de guris” entre os moradores do Areal e da Ilhota.

Convidamos Seu José para ir até a rua nos mostrar a região. Nosso objetivo era resgatar parte da memória daquele local por meio das lembranças de um tempo já vivenciado por ele. Ao sairmos para a rua, nos deparamos imediatamente com o compadre de Seu José. Ele mostrou-se extremamente simpático e feliz com a realização do nosso Projeto Habitantes do Arroio. A sensação que eu tive, foi que o projeto significa para Seu Marco Antonio uma forma de buscar no passado a sua própria história. Mostrou sentir-se valorizado por estarmos em busca desses fatos vividos, no passado, por eles e que hoje são apenas suas recordações, mas que para nós agora, significam a memória ambiental da cidade.

Seu Marco Antonio apontou-nos sua residência que fica no mesmo terreno de uma casa do ano de 1915, que aluga para um ferreiro. Esta antiga residência de tom rosa com janelas e portas cor vinho, segundo Seu Marco Antonio, é alugada para este senhor há aproximadamente 30 anos. Contou-nos também que durante uma enchente, um parente seu teve que sair de dentro de casa numa canoa. Relembrou que a rua hoje toda de paralelepípedos, no passado era de chão batido. Durante a conversa, por inúmeras vezes, Seu Marco Antonio exaltou a bondade de seu amigo José que costumava levar para dentro da sua própria casa, pessoas desabrigadas. Não somente isso, assim como seu amigo, ele comentou que os dois eram os mais antigos moradores do local. Lembrou-se do irmão mais velho de Seu José, que já morrera, e que foi uma grande referência para os dois.

Seu Marco Antonio por diversas vezes me pareceu bastante emocionado e agradecido, por ter a oportunidade de narrar sua vida, que faz parte da história do velho riacho, que teve suas águas domadas por encanamentos. Contou-nos ter uma pequena foto pessoal do riacho, passando atrás de sua casa. Os dois amigos também nos mostram o terreno onde morava a mãe do futebolista Tesourinha onde se avistava apenas um matagal e o esqueleto de uma antiga casa. Em seguida, sugerimos a realização de uma nova entrevista com ele em outro momento, para que pudesse compartilhar conosco um pouco mais de suas lembranças.

terça-feira, 19 de maio de 2009

O Arroio Sem Nome (1)

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição da qual parte este projeto, está intimamente ligada ao Arroio Dilúvio. Uma das suas interfaces ocorre através do Arroio Sem Nome, uma “sanga”, conforme os moradores locais, que é justamente a divisa de município entre Porto Alegre e Viamão. Nesta fronteira encontra-se também o Campus do Vale da UFRGS, constituindo-se, portanto, em território de responsabilidade do Governo Federal, entre os dois municípios.

Assim como o Arroio Sem Nome, muitas pessoas cruzam diariamente essa fronteira: estudantes, moradores de Viamão, funcionários da UFRGS, motoqueiros preenchem o confuso espaço sonoro que anuncia a presença da água, nas ruas que levam à Vila Santa Isabel.

O Arroio, sem nome, quase sem margem, nomeado pela quase negação de sua característica natural, se encontra espremido entre um muro que a Universidade construiu, e os caminhos e terrenos apropriados traçados em sua margem ocupada.


Encontramos Carlos, morador da Vila Santa Isabel, e proprietário da Escadinha que presta serviço de cópias para os estudantes da UFRGS. Carlos, da porta de seu negócio, observa o comportamento daqueles que passam em frente ao arroio. Alguns o ignoram, outros lançam sacos de lixo em suas águas, em suas margens. Carlos nos conta os conflitos que observou, envolvendo a Prefeitura de Viamão, a Universidade Federal, a Prefeitura de Porto Alegre, O Ministério Público e os moradores da Vila. Carlos nos relatava iniciativas contraditórias entre estas instituições: o cercamento da margem por parte da UFRGS, a obrigatoriedade da construção de fossas sépticas na beira do arroio por parte da Prefeitura de Viamão, a instalação de uma lixeira pública na margem do arroio, como forma de remediar o uso popular do local como depósito de lixo. São todas medidas que negam aquilo a que este arroio nunca alcançou, o reconhecimento da sua importância para a bacia hidrográfica com a qual contribuiu, e a manutenção de suas características naturais.

Os moradores que encontramos nos relatam suas próprias iniciativas de limpeza do arroio, de dragagem caseira de suas margens, de táticas para driblar a presença do esgoto dos vizinhos atravessando seu quintal para chegar até à sanga. Surpreendeu-me a iniciativa desses moradores, em expor essa relação. Encontraram na equipe de gravação, estudantes da UFRGS, que conduzi até seu cotidiano, uma escuta diferenciada, e uma forma de fazer sua palavra atravessar a fronteira invisível que os segrega.

Narrando suas trajetórias e itinerários pela cidade que os levaram até a beira do arroio, os vizinhos Catarina e Oscar nos contam seus projetos, suas iniciativas, seus impasses. Evidenciam um cotidiano no qual se encontram ligados pelas águas, pela água da chuva, pela água potável cuja conta é divida entre as casas, pela água do arroio nas cheias, pela água do esgoto nos pátios.

Paradoxalmente, a ocupação irregular do arroio parece ser a única que o reconhece, e com ele convive.

A questão é pertinente:

A quem pertence este arroio?

A quem cabe nomeá-lo?

Melhor seria perguntar:

Quem é responsável por ele?

O Arroio Sem Nome tem suas nascentes no Morro Santana, ele desce pela Vila Santa Isabel, costeando o Campus do Vale da UFRGS até a barragem construída pela Universidade no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), direcionando-se então para o Arroio Dilúvio.


Saídas de Campo realizadas nos dias 06 e 13 de maio de 2009. Participaram das gravações o Bolsista DTI do Projeto Habitantes do Arroio Rafael Devos (Pesquisador Associado BIEV/UFRGS) e os bolsistas do BIEV/UFRGS, estudantes de Ciências Sociais da UFRGS, Ana Paula Parodi, Luciana Tubello Caldas, Patrick Barcelos e Stéphanie Bexiga.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Qual a importância do Arroio Dilúvio?



A primeira resposta que nos vem à mente é a questão do esgoto – levar embora a sujeira. Mas esta não é apenas uma questão de higiene. O esgoto de Porto Alegre é responsabilidade de dois órgãos municipais: o DMAE, que trata do abastecimento de água e do tratamento dos esgotos domésticos, e o DEP, que trata do esgoto pluvial, da água da chuva. Em uma de nossas primeiras consultas a técnicos da área ambiental, conversamos com Daniela Bemfica e Juliana Young, do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), que nos esclareceram algumas das questões que são cada vez mais notícia em vários estados brasileiros: as enchentes, a impermeabilização do solo e a importância dos arroios no escoamento da água da chuva.

O que parece atualmente um problema controlado, se revela o nó da questão para a revisão do planejamento urbano das cidades, dos vales, das áreas baixas do Brasil. O esgoto pluvial não se apresenta como um problema para Porto Alegre, mas escoar a água da chuva é uma das maiores dificuldades urbanas contemporâneas, com a impermeabilização do solo. Muitas reivindicações são feitas quanto a saneamento, no sentido de acabar com o esgoto doméstico “à céu aberto”, com a sujeira, mas o saneamento dos “valões” vai para muito além disso, pois revela uma interdependência ainda maior entre muitas localidades da cidade, que nem imaginam que estão ligadas pela água da chuva. O convencimento da população (moradores, empresários da construção civil, proprietários de imóveis, arquitetos) de como colaborar com essa face do saneamento e conviver com a dinâmica hídrica é complicado. Muitas vezes, a solução reivindicada, a canalização dos arroios pode acelerar sua vazão, necessitando de bombeamento, diques e outras medidas de proteção. A obra do Arroio Dilúvio, fundamental para Porto Alegre, é a expressão máxima desse modelo de saneamento, que reunia ao mesmo tempo a construção de grandes avenidas, a valorização das terras urbanas em áreas alagadiças e o saneamento pluvial e doméstico. Embora tenha resolvido o problema das cheias constantes do Arroio Dilúvio, o modelo de urbanização em que a obra estava inserida passou a ser aplicada a muitas regiões da cidade, fazendo com que a capacidade do solo urbano de absorver a água da chuva diminuísse cada vez mais. A negociação que se apresenta agora é sobre um novo modelo de saneamento, no qual os arroios não sejam mais canalizados, pelo contrário, se prevê uma revisão da construção civil nas áreas em torno dos arroios.

Indicado pelas técnicas do DEP entrevistadas pela equipe de pesquisa, Sr. Leopoldino Borges nos conta as negociações necessárias com os moradores, e a trama institucional que se passa na canalização do Dilúvio nos anos 1950/60. Ele nos conta que, na época, ocorreu um imenso investimento do Governo Federal nas obras de contenção de cheias, de drenagem, de urbanização das cidades brasileiras em conjunto com uma estratégia de controle da fúria das águas. O Departamento Nacional de Obras e Saneamento, no qual Sr. Leopoldino trabalhou, foi responsável por inúmeras obras em Porto Alegre e no interior do RS, com o objetivo de evitar que a grande tragédia da Enchente de 1941 se repetisse. A enchente de 1941, e as cheias seguintes, na década de 1960, revelaram à cidade de Porto Alegre seu frágil lugar na Bacia Hidrográfica: às margens do Lago Guaíba, em uma área baixa, recebe mais de um terço das águas de todo o Rio Grande do Sul. Embora as cheias estivessem presentes na memória dos habitantes, a sua relação com a urbanização não é evidente. A tendência é que o solo urbano tome a frente da água, nas questões fundiárias.



Apesar do investimento ser do Governo Federal, as negociações quanto ao solo urbano são mediadas pelo Município, pela Prefeitura. Ainda hoje, o direito a um saneamento adequado, e as obrigações quanto à destinação correta de efluentes são colocadas a partir de leis federais, enquanto que a gestão deste saneamento cabe ao município. Vemos se processar contemporaneamente esta lógica inversa em muitas cidades do Brasil, atingidas por cheias: a situação de emergência, de calamidade pública convoca o Governo Federal a tomar medidas para remediar a tragédia, os prejuízos. São certamente negociações políticas, mas pode-se também perguntar qual o papel dos demais atores nesta interdependência. Certamente, o reconhecimento desse processo de impermeabilização do solo por parte de quem volta seus projetos de construção para as regiões em torno dos arroios é fundamental, do empresário da construção civil, passando pelo futuro morador de um prédio, até o morador que constrói sua casa com a ajuda de sua rede de vizinhança.

A obra do Dilúvio, apesar de seguir o modelo das canalizações, foi fundamental. Mas novas possibilidades se apresentam contemporaneamente. A virada possível no saneamento contemporâneo é a necessidade de manter, ao longo dos arroios, a mata nativa, a vegetação constantemente cuidada, espaços largos onde a água da chuva que transborda possa ser absorvida. Ainda que se possa construir muros de contenção, diques e outras soluções, a permanência da feição “natural” do arroio, sua inserção no conjunto das obras das vias urbanas, dos espaços destinados à construção civil é fundamental, ou seja, uma nova urbanização se configura neste sentido.
Perguntamo-nos, depois dessa herança das cidades brasileiras, dessa luta contra a água e as áreas naturais no processo de urbanização que marca a memória ambiental de muitas cidades como Porto Alegre, como inverter essa lógica conquistada do concreto sobre a terra a água? Sanear não é necessariamente “limpar”, mas a oposição entre a limpeza e a sujeira, como nos ensina a Antropologia, nos convoca a repensar a ordem do universo, a forma como ordenamos esse arranjo de moradas, avenidas e arroios.

A alternativa contemporânea, de “renaturalizar” arroios no mundo inteiro, não precisaria ainda ser seguida por Porto Alegre, mas certamente, não é mais necessário canalizar, “enterrar” arroios na cidade. Há uma série de iniciativas previstas na cidade, com relação, por exemplo, ao Arroio Moinho, afluente do Dilúvio, que seguem essa nova perspectiva. Prepara-se uma nova etapa do saneamento pluvial na cidade – o debate sobre como fazer contenção de cheias: fazer piscinões como os de São Paulo (onde?), estender a foz do Arroio até mais adentro do Guaíba, lançando lago adentro as águas do Dilúvio? Apesar do Dilúvio parecer “controlado” quanto ao esgoto pluvial, seus afluentes ainda não são. Um debate que as técnicas do DEP prevêem, ainda se colocará presente na cidade.

Créditos das fotos:

Fonte: DEP (Departamento de Esgotos Pluviais) - Porto Alegre

Fundo de Origem: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa

Ano: 1951


ARROIO DILÚVIO - Mapa dos locais pesquisados em Porto Alegre - clique nos ícones para ver


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